O DESPERTAR DA REFLEXÃO MORAL E POLÍTICA

[in J. Gernet, "Mundo Chinês": Lisboa, 1969]

Confúcio, mestre da escola de letrados.
Aqueles que na época dos Han foram considerados como pertencendo à escola dos letrados (rujia), proclamavam-se continuadores de um sábio de nome Kong Qiu, que os missionários jesuítas do século XVII iriam latinizar em Confucius (Kong  fuzi, mestre Kong). O que dele ficou limita-se a algumas tradições mais ou menos autênticas e a uma pequena antologia dos seus dicta, o Lunyu, cujo texto foi estabelecido pelos discípulos depois da sua morte. O que, em rigor, se poderia chamar a “tradição confuciana”, é formada por um conjunto de textos, relativamente heterogêneos pela sua natureza e conteúdo, que engloba os clássicos, os seus comentários mais antigos, os  Exercícios de Confúcio e obras do século III a. C. que revelam orientações originais, típicas desta época de profundas perturbações sociais e políticas. Se o termo confucionismo, forjado pelos ocidentais, tem um sentido, é evidente que ultrapassa em muito a própria personalidade do grande sábio.

Sem dúvida que podemos datar de Confúcio e da sua época o início de uma reflexão moral que parece ter sido provocada pela crise da sociedade nobre e pelo declínio dos ritos. O lugar reservado no seu ensino aos escritos da Antigüidade revela que Confúcio se liga aos centros tradicionalistas de escribas e analistas. Chocados pelos atentados cada vez mais freqüentes aos usos e regras antigas, estes centros iriam ser tentados a regressar à correção ritual, tanto nas práticas como no emprego dos termos (o que e confirmado pelo desenvolvimento ulterior de um ritualismo arcaizante, naturalmente utópico, e da teoria da correção dos nomes,  zheng-ming). Também parece natural que nestes centros se tenha feito um esforço para definir o homem de bem (junzi) independentemente das situações já adquiridas. Tal é, pelo menos, a orientação geral que podemos entrever. Mestre de uma pequena escola que se propunha formar homens de bem, Confúcio (datas tradicionais: 551-479) liga uma grande importância aos exercícios de celebração ritual, princípio de um aperfeiçoamento individual que permite o domínio dos gestos, das ações e dos sentimentos. A sua moral, que é fruto de uma reflexão permanente sobre os homens, desconhece qualquer imperativo abstrato. É prática e ativa, e o mestre tanto atenta em cada circunstância particular como no caráter próprio de cada um dos seus discípulos. Assim, as qualidades que fazem o homem perfeito, e em particular o ren, que podemos definir como uma disposição de espírito afetuosa e indulgente, não podem ser definidas de uma vez para sempre, mas, pelo contrário, são objeto de aproximações sucessivas, consoante os casos e os indivíduos. A sabedoria só pode ser adquirida como conseqüência de um esforço de todos os momentos e de toda uma vida, orientado para o controle dos mínimos pormenores do comportamento, para a observação das regras de vida em sociedade (yi), para respeito do próximo e de si mesmo, para o sentido da reciprocidade (shu). O que o mestre tem em vista não é uma ciência abstrata do homem, mas sim uma arte de viver que abrange a psicologia, a moral e a política. A virtude é fruto de um esforço pessoal e não mais uma qualidade intrínseca das linhagens nobres. Ao espírito de competição que anima a alta nobreza da sua época, Confúcio opõe a probidade, a confiança e o bom entendimento que lhe parecem ter regulado outrora as relações humanas. Identifica cultura pessoal e bem público.

Assim surgem as idéias novas de um ensino que. antes de mais, queria ser fiel à tradição. Serão desenvolvidas e tomarão novas significações, num outro contexto histórico, com Mengzi (Mêncio), que viveu na segunda metade do século IV, e Xunzi (por volta de 298-235). A razão da glória que o mestre conheceria durante o período Han, ainda maior a   partir da época dos Song (séculos X a XII), está no contributo teórico e doutrinal que posteriormente veio enriquecer o conjunto das suas idéias.

Mozi, fundador de uma seita de irmãos pregadores.
Sessenta anos depois de Confúcio, surgia Mozi (por volta de 480-390) como mestre de uma seita de pequenos fidalgos (shi) que, contrariamente à humilde escola de Confúcio, iria ter um enorme êxito nos séculos IV e III. Emocionado pelos conflitos da sua época, hostil ao espírito de clã cujos efeitos desastrosos são cada vez mais sensíveis, Mozi procura criar uma nova sociedade igualitarista, fundamentada no sentido do auxílio mútuo e do devotamento ao bem comum (jianli). Condena o espírito de lucro, o luxo, a acumulação das riquezas, o desenvolvimento do poderio militar, a guerra que, segundo ele, no passa de uma forma de pilhagem, e propõe como remédios para os males da sua época, um ideal de frugalidade universal, uma regulamentação uniforme das despesas, um respeito rigoroso das leis e a crença nos deuses e nos espíritos. Crendo que o egoísmo familiar é a causa principal das querelas e dos conflitos, preconiza um altruísmo generalizado  (jian’ ai). Os seus adeptos, animados de uma fé sectária, vivem na miséria e intervêm no sentido de evitar as guerras e defender pelas armas cidades injustamente atacadas (fato curioso, o de serem estes pacifistas convictos quem dão as informações mais precisas sobre a arte militar da época dos Reinos Guerreiros). A obra atribuída a Mozi é formada, na sua maior parte, por sermões moralizantes cujos temas eram sem dúvida objeto de prédicas: “da frugalidade”, “contra a agressão”, “a vontade do céu”, “da existência dos espíritos”, “contra os letrados”, etc. Partidário de um poder autoritário que se apoiaria nos pequenos fidalgos, Mozi desejaria que fosse imposto a todos uma espécie de conformismo moral.

Esta estranha seita que parece ter feito numerosos adeptos no decurso dos dois séculos que precederam a unificação imperial, não iria, no entanto deixar a sua existência gravada na história do pensamento chinês. O seu contributo mais notável refere-se à arte do discurso: Mozi e os seus discípulos cultivaram a retórica com fins de pregação, contribuindo assim para um progresso no encadeamento das idéias e para uma simplificação da frase. Propuseram-se ilustrar os seus sermões com exemplos e ampliá-los usando a analogia.

 Correntes intelectuais do século 4 e 3
As transformações sociais e econômicas que começam a fazer-se sentir no século V e a tendência do poder central para se apoiar na pequena nobreza, explicam a proliferação  de clientelas, de seitas e de escolas. Os fidalgos em busca de ocupação procuram ilustrar-se nas artes de modo a assegurar a proteção dos poderosos, numa época em que os chefes dos reinos procuram lançar mão de todos os processos, estratagemas e técnicas que lhes permitam fortalecer o seu poder e avantajá-los perante os seus rivais. Prioridade portanto para as artes que dizem respeito ao governo do Estado: umas, por exemplo a ciência das relações diplomáticas, a arte da persuasão, o conhecimento de processos secretos de governo, são de caráter civil (wen), outras, como a tática, a estratégia e a esgrima, são de caráter militar (wu). Importantes também as técnicas graças às quais è possível enriquecer o reino (agronomia e hidrologia) ou por cuja virtude o príncipe consegue aumentar o seu poder vital de modo a alcançar a santidade. Aparecem mestres eminentes nestas artes e nestas técnicas e à volta deles agrupa-se um número variável de discípulos. Indo de reino em reino oferecer os seus ensinamentos, albergam-se por vezes na corte dos príncipes ou nas casas de seus conselheiros. Mas esta multiplicação de escolas e a proliferação destes  conhecimentos tornam-se sobretudo sensíveis nos séculos IV e III e não há dúvida que devemos considerar Confúcio e o próprio Mozi, com exceção dos seus discípulos, como pertencendo a uma época em que esta evolução se esboçava apenas.
O objetivo essencialmente pratico destes ensinamentos e suas ligações estreitas com preocupações políticas, sociais e econômicas do seu tempo, explicam o caráter eclético da maior parte deles e a facilidade com que se exerciam influências recíprocas – não se trata de sistemas, ou de construções filosóficas desinteressadas, mas de correntes de pensamento entre as quais é por vezes difícil estabelecer limites bem definidos. No entanto esta orientação prática não faz desaparecer o valor e o interesse propriamente filosófico das questões que se puseram aos pensadores chineses desta época, pois não há só uma maneira, abstrata e lógica, de filosofar.

Os teóricos do Estado
De todas as correntes de pensamento dos séculos IV e III sem dúvida que a mais importante é a representada pelos pensadores posteriormente qualificados de legistas (fajia). É, pelo menos, aquela que com mais eficácia contribuiu para as transformações do Estado e da sociedade, nesse período. No entanto, a história desta corrente é mal conhecida.   O  Shangzi, ou  Shangjunshu, obra atribuída a Shang Yang, autor das reformas de Qin nos meados do século IV, passa por ser um documento falso, forjado vários séculos depois; uma obra compósita redigida na época dos Reinos Guerreiros e atribuída a Guang Zhong, ministro do príncipe Huan de Qi no século VII, levou os bibliógrafos da época dos Han a fazer desta personagem semi- lendária o primeiro dos legistas; desconhece-se quem eram Shen Buhai e Shen Dao, incluídos no grupo dos legistas do período Han, e cujas concepções são mal conhecidas. Somente a obra do eminente pensador que foi Han Fei, Fei de Han (280?-234), o Hanfeizei, parece ser autêntica na sua maior parte. O pensamento legista aparece aí na sua forma mais elaborada, como resultado de uma síntese e de uma reflexão que se aplicou a toda uma série de experiências relativas ao governo e à organização do Estado. Estas experiências interessam tanto à diplomacia, à guerra e à economia, como à administração e respondem aos cuidados postos, sobretudo nos séculos V a III, no reforço do poderio econômico e militar dos reinos. Mas o mérito dos legistas consiste em ter compreendido que o poderio do Estado residia nas instituições políticas e sociais, a sua originalidade é a de ter querido submeter o Estado e os seus súditos à soberania da lei.

Segundo Han Fei, o que importa é que o príncipe seja a única fonte de benfeitorias e de honras, de castigos e de penas. Se delega a menor parte que seja do seu poder, corre o risco de criar rivais, que cedo tentarão usurpar-lhe esse poder. Do mesmo modo, é necessário que as atribuições dos funcionários do Estado sejam estritamente definidas e delimitadas para que não surja nenhum conflito de alçada e para que os funcionários não se aproveitem da imprecisão dos seus poderes para se arrogarem uma autoridade ilegítima. Mas, acima de tudo, o que deve assegurar o funcionamento do Estado é a instituição de regras objetivas, imperativas e gerais. Nas suas tendências filosóficas, a corrente representada pelos legistas caracteriza-se por um constante intento de objetividade. Não só deve a lei ser pública, conhecida por todos, não consentindo qualquer interpretação divergente, mas também a sua própria aplicação deve ser independente dos juízos incertos e variáveis dos homens. Medir os méritos conquistados na guerra, calcular o grau de bravura pelo número de cabeças cortadas ao inimigo, pode parecer um processo um pouco fruste, mas no entanto tem a vantagem de eliminar qualquer discussão sobre questões que, na ausência de um critério objetivo de medida, estariam unicamente dependentes da opinião. Todo o espírito do direito chinês ficará marcado pela orientação inicial que o legismo lhe deu. O papel do juiz, chefe administrativo, não é pesar os prós e os contras, ou apreciar no tribunal da sua própria consciência e aplicar as penas de modo arbitrário, mas sim definir corretamente o delito. O seu trabalho limita-se a isto, porque esta definição conduz automaticamente à sanção correspondente prevista pelo Código. Na administração, a execução rigorosa das ordens deve ser assegurada pelo recurso à escrituração (relatórios de gestão, inventários, resumos diários), aos cálculos e ao uso de provas objetivas (selos ou insígnias partidos em duas partes, cujo encontro é suficiente para revelar a sua autenticidade, devido à coincidência dos sinais). O valor das instituições e dos funcionários do Estado deve ser julgado pelo seu rendimento efetivo (gongyong).

O problema da escolha dos homens, muito importante para os moralistas partidários de um governo inspirado pelo exercício da virtude, não tem importância para os legistas. O príncipe não precisa de homens de exceção e não corre quaisquer riscos: qualquer um lhe serve porque os mecanismos montados devem assegurar necessariamente o bom funcionamento do Estado e da sociedade. As qualidades morais são inúteis e até perniciosas pois podem levar o Estado à ruína dando aos homens virtuosos um poder que põe em perigo a soberania do príncipe e da lei. Tal como o proclama o  Shangzi, que a despeito da sua data tardia continua fiel à tradição legista dos séculos IV e III a.C., a política nada tem a ver com a moral. Ela é unicamente o conjunto dos meios positivos e dos estratagemas que asseguram e mantém a predominância do Estado.

As disposições legislativas, além de terem como objetivo reformar de maneira radical a organização política, visam também uma remodelação de toda a sociedade. A instituição de uma escala de delitos e de uma escala de graus honoríficos, que formam um conjunto indissociável, iria conduzir à criação de uma hierarquia social contínua, que em qualquer momento pode ser revista, e que orienta toda a atividade dos súditos e os põe ao serviço do Estado, favorecendo aqueles cujas atividades são consideradas úteis (guerreiros e produtores de cereais) e penalizando os outros (vagabundos, parasitas, fabricantes de objetos de luxo, polemistas e filósofos). As condições históricas – evolução dos exércitos aos quais o campesinato acabaria por fornecer a maioria dos combatentes; necessidade de reservas suficientes para efetuar campanhas muito duradouras – levaram a que se desse uma prioridade absoluta à produção agrícola. A agricultura é então considerada como a fonte  (ben: a raiz ou o tronco) de todo o poderio econômico e militar, por oposição às atividades secundárias e acessórias (os ramos, mo), artesanato e comércio, cujo desenvolvimento desordenado pode conduzir ao enfraquecimento e ruína do Estado. É indispensável pôr um freio a todas as atividades que desviam a população das suas tarefas essenciais, lutar contra os especuladores, controlar o preço dos artigos de primeira necessidade bem como a moeda. Desde os séculos IV e III assiste-se ao nascimento de uma economia política que, no mundo chinês, conheceu um grande e precoce desenvolvimento.

Embora o príncipe seja a única fonte das sanções e das honras que determinam a hierarquia social, isso não implica que possa dispor desse poder ao sabor da sua fantasia. O seu poder limita-se a criar instituições e critérios objetivos conhecidos por todos. A sua imparcialidade é total, semelhante à da ordem natural, e, neste ponto, é muito notória a influência dos taoístas e de Han Fei.

Outras influências atuaram na formação do legismo. Antes mesmo que se afirmasse uma teoria do Estado baseada na autoridade do príncipe e da lei, aqueles que desejavam triunfar nas relações diplomáticas procuravam tirar partido das ocasiões e situações favoráveis (shi), servindo-se de processos mantidos secretos  (shu). Esta concepção da ação  polida fundamentada na idéia de tempos e espaços concretos e singulares parece ter sido a primeira que se impôs quando os chefes dos reinos quiseram tirar partido das transformações da sociedade nobre para se libertarem das grandes famílias aristocráticas e tentarem alcançar a hegemonia. É aos legistas que se deve, além do conjunto de leis destinadas a assegurar o funcionamento do Estado e a organização geral da sociedade, esta noção de processos e estratagemas secretos, e por isso o príncipe deve-lhes uma parte do seu poder pessoal.

Por fim, a mentalidade dos grandes e ativos mercadores, alguns dos quais serviram de conselheiros aos chefes dos reinos do século V ao III (Fan Li em Yue, cerca do ano 500, um dos primeiros a preconizar o enriquecimento do Estado e o fortalecimento dos exércitos,  fuguo qiangbing; Bai Gui em Wei no século IV; e Lü Buwei conselheiro do príncipe de Qin no fim do século III), influenciou também a formação do legismo. O recurso a cálculos e a processos objetivos de prova, a própria idéia dos estratagemas secretos são comuns a legistas e a mercadores.

O que, das concepções dos legistas, mais impressionou os seus contemporâneos e os homens da época dos Han, foi a igualdade perante a lei que propunham impor a todos. Eles não distinguem, escreveu Sima Tan no século II a.C., os próximos dos estranhos, não diferenciam os nobres dos vilãos e a todos julgam pela lei, de modo que foram abolidas todas as relações baseadas na amizade e no respeito. Mas, a despeito das transformações posteriores que o mundo chinês sofreu, a contribuição dos legistas foi fundamental no domínio dos direito e da organização política, social e administrativa. O legismo não deixou de inspirar o pensamento político chinês até aos nossos dias.

Das práticas religiosas à Filosofia: os taoístas.
Os séculos IV e III:, período de inquietação, de perturbações e de transformações sociais, iriam ser particularmente propícios ao desenvolvimento de correntes religiosas. Já no século V a seita dirigida por Mozi se havia evidenciado pela sua religiosidade e pela ambição de assegurar a salvação universal. Para os que mais tarde foram chamados taoístas  (daojia), a salvação de cada um e de todos não reside numa ação coletiva, mas sim no recolhimento e na prática de processos que permitem abstrair-se do mundo e dominá-lo. Destes homens ficaram-nos antologias de apólogos, de historietas simbólicas e de discussões. A mais importante, o  Zhuangzi,  é, na sua maior parte, obra de um escritor de gênio, sem dúvida um dos maiores da longa história da literatura chinesa  (Zhuang Zhou, que viveu por volta de 370-300). Um outra composição mais tardia, o Liezi, parece ter sido composta à imitação do Zhuangzi. A estas duas obras junta-se um opúsculo, o Laozi daodejing atribuído ao filósofo Lao Dan ou mestre Lao (Laozi) *, com sentenças sibilinas que devem sem dúvida servir de temas de meditação e cuja obscuridade tentou elevado número de tradutores.

Numerosas passagens permitem suspeitar do recurso a práticas mágico-religiosas que são provavelmente antiqüíssimas. Como foi sublinhado por Marcel Granet, nos pensadores taoístas o ponto de partida não é filosófico, mas religioso. O seu objetivo era conservar e aumentar a força vital pelo recurso à disciplinas alimentares, respiratórias (respiração em circuito fechado), sexuais, gímnicas e, sem dúvida, já alquímicas, cujo conjunto correspondia ao termo yangsheng (“alimentar o principio vital”). Era este o meio de educar o corpo para o tornar invulnerável (a água, o fogo, os animais ferozes nada podiam contra o santo). de adquirir o poder de se recrear vagueando em êxtase pelo universo, de retardar indefinidamente o envelhecimento do indivíduo. Todas estas técnicas, melhor conhecidas a partir da época dos Han parecem ter sido apanágio de escolas de mágicos (wu) conhecidas desde a mais alta Antigüidade.

É sobre esta base de tradições mágicas e sob a influência de outras correntes do pensamento, mas em oposição absoluta com elas, que parece ter-se desenvolvido a filosofia taoísta. As sujeições à moral, aos ritos, à organização política, aos sacrifícios que os tristes adeptos de Mozi praticavam, os pensadores taoístas opõem um ideal de vida autônoma, natural, livre e alegre. Todas as misérias do mundo provém das deformações, dos obstáculos e dos acrescentos supérfluos impostos à natureza pela cultura, e cujo efeito é enfraquecer o princípio vital. Para se levar uma vida cheia e completa, é necessário evitar todo o desperdício de energias, reencontrar a simplicidade perfeita (pu) do ser no estado bruto, é necessário conformar-se com o ritmo da vida universal, alternar os longos períodos de hibernação com livres recreações, imitar nos seus jogos e danças os animais, os quais conhecem espontaneamente os segredos da higiene vital.  É preciso ser como o grande Todo: silêncio, quietude e completa indiferença. Os que se agitam, os que se movimentam na procura da fortuna e da glória, os que querem salvar o mundo, os que se devotam ao serviço do Estado não passam de tolos que desperdiçam a sua força vital acabando por perder toda a esperança de atingir a verdadeira santidade.

Do mesmo modo, é preciso desprezar todo o pensamento discursivo, porque a linguagem, instituição social, é um dos primeiros obstáculos à livre comunicação do ser com o grande Todo. Todas as distinções são arbitrárias. A vida e a morte são duas fases alternadas da mesma realidade. E Zhuangzi rouba aos sofistas a sua dialética para demonstrar a completa futilidade das oposições da linguagem. Todo o ensino que recorra à palavra é ilusório e os escritos dos antigos não são mais do que os seus dejetos. O santo instrui e transforma os seus discípulos de um modo direto, pela sua influência insensível, sem pronunciar uma única palavra. Com efeito, para além deste conhecimento imediato e universal dado pela perfeita quietude e indiferença, não há senão verdades fugitivas, ocasionais, transitórias e relativas. A única realidade autêntica é o poder indefinido de transformação, é o principio imanente de espontaneidade cósmica, chamado Dao (Tao).

O taoísmo iria ter uma influência capital e muitas vezes preponderante no pensamento chinês e no desenvolvimento dos movimentos religiosos no mundo chinês. Contribuiu em boa medida para a formação de concepções científicas e para certas descobertas. Mas a sua influência não foi sensível na concepção do poder político (um dos fundamentos do qual residia na posse de poderes mágico - religiosos), nem nas teorias sobre a governação.

Mêncio
Aos inovadores preocupados com o funcionamento do Estado e com a instauração das instituições necessárias ao seu desenvolvimento, opõem-se os que acreditam que o fundamento do poder reside na virtude do príncipe, idéia antiga que o progresso das concepções morais tende a renovar por completo no seio dos que se proclamam herdeiros de Confúcio. A virtude tornou-se uma qualidade moral cuja aquisição está ao alcance de todos e deixou de ser apanágio das linhagens aristocráticas. Para Mengzi (Mêncio; segunda metade do século IV), o príncipe capaz de manifestar uma virtude igual à dos heróis míticos da alta Antigüidade (Yao, Shun e Yu, o fundador dos Xia) e dos primeiros reis dos Zhou, épocas em que reinava uma harmonia social perfeita, impor-se-á necessariamente ao conjunto dos territórios chineses como soberano universal. Já não se trata de um poder patrimonial de fundamento religioso, mas muito simplesmente de generosidade e de preocupação pelo bem-estar de cada um. O que tem importância não são as terras, sempre suficientes, nem as riquezas, nem o poderio guerreiro  –  nada disto tem valor sem a adesão e o concurso dos pequenos fidalgos e plebeus  –  mas os homens. No entanto, a cobiça, o egoísmo, a paixão de dominar, levando os príncipes a multiplicar as violências e os sofrimentos impostos aos humildes, fazem-lhes perder a simpatia das populações. Entre os grandes deste mundo aquele que, nesta época de violência e de desregramento dos apetites, ousasse regressar ao governo humanitário dos antigos reis, num desafio audacioso, provocaria uma autêntica revolução  –  todos os povos oprimidos correriam para ele como se fosse o seu salvador.

Na obra que reproduz os diálogos do mestre e onde se encontram também conselhos de ordem econômica e fiscal (Mêncio propõe o regresso a antiga prática do “campo comum” idealizado no sistema do jing  –   divisão dos lotes em quadrados de nove parcelas iguais  –  e reduzir as taxas comerciais) esse tema abundantemente explanado está associado a uma concepção otimista da natureza humana. Os homens possuem em germes desde o nascimento, as qualidades morais necessárias para a sua formação como homens   de bem: ren, generosidade, yi, sentido do dever,  li, civilidade, zhi, conhecimento. Estes germes podem desenvolver-se pela educação ou ser abafados pela influência perniciosa do ambiente.

Pensador sem grande originalidade, Mêncio só iria conhecer um grande sucesso a partir dos séculos  IX - XI, graças às analogias que a sua concepção da natureza humana (xing) apresentava com certas teorias budistas (a natureza de Buda  é inata em cada ser) e ao acordo das suas idéias políticas com as tendências filosóficas e morais que se desenvolveram na época dos Song. O  Mencius tornar-se-á um dos textos de base da ortodoxia “neo- confucionista” que os impérios autoritários e paternalistas dos Ming (1368-1644) e dos Qing (1644-1911) adotarão.

Xunzi
Muito mais profundo e original que Mêncio, Xunzi. (aproximadamente 298-235 a.C.)  é, com o seu contemporâneo Han Fei, um dos espíritos mais brilhantes do século III. O seu pensamento deve muito aos legistas, bem como aos taoístas. Xunzi, sem dúvida o primeiro na história universal a reconhecer a origem social da moral, recusa-se a ver na natureza humana no estado bruto outra cousa que não seja um complexo de tendências anárquicas e irracionais: o bem e a razão nascem da disciplina que a própria vida em sociedade impõe. É a sociedade que, pela repressão constante que exerce sobre os apetites, sobre a violência e egoísmo naturais dos indivíduos, canaliza estas forças vivas, domesticando-as e pondo-as ao serviço de todos e de cada um. A sociedade é a grande educadora dos indivíduos. Deveres (yi) e regras de comportamento  (li, “ritos”) educam cada um no controle de si próprio e no sentido do conveniente e do justo. Festas e cerimônias, música e dança constituem um treino para o bom entendimento entre os homens. As instituições formam o homem. Yi e li, concebidos como realidades objetivas e não já como qualidades morais, longe de serem a obra arbitrária de um legislador, são o produto natural da história  –   incorporam-se num princípio de racionalidade e a própria sociedade é a fonte de toda a razão (li). Ordem social e razão confundem-se.

Sem uma distribuição (fen) dos graus e das condições conforme à equidade (yi), a coesão social que dá forma coletiva aos agrupamentos humanos seria arruinada por disputas e querelas. Importa portanto que esta repartição seja clara e que os nomes estejam de acordo com as realidades. É em Xunzi que se encontra uma das melhores  exposições da  teoria da “correção dos nomes” (zengming). Nascida no seio  dos grupos de escribas e analistas, que viam num emprego dos termos em conformidade com a tradição ritual o meio de exprimir um juízo moral, a teoria do zengming torna-se o instrumento de uma ordem nova baseada em méritos e deméritos. Qualificando  –  isto é, outorgando títulos e graus  –  o príncipe segrega a ordem que assegura o funcionamento regular do conjunto da sociedade. Fazendo-o, não intervém nas querelas, limita-se a montar um dispositivo que as evita, visto que se baseia no consenso de todos. Reencontramos aqui o mesmo caminho que trilhara Han Fei: o príncipe não comanda, não intervém diretamente; completamente imparcial ele é a fonte e a garantia de uma ordem universal.

 Também em Xunzi, como nos outros pensadores chineses, não se encontra a idéia (que parece ser constitutiva do pensamento ocidental) de que a ordem tem como princípio  um poder de coagir e de governar o indivíduo. A ordem, que nasceu na época Chunqiu no conjunto das regras rituais e das hierarquias dos cultos familiares, é, para Mêncio, o resultado espontâneo do comportamento de um príncipe destinado a tornar-se soberano universal; para Zhuangzi o efeito da virtude do santo; o resultado dos mecanismos objetivos nascidos da vida em sociedade, para Xunzi: ou das regras gerais postas em execução pelos chefes do Estado, segundo Han Fei. A idéia de que a ordem só pode resultar de um ajustamento espontâneo e orgânico volta a encontrar-se nas concepções cosmológicas  – nenhuma força individualizada comanda a natureza, cujo equilíbrio é assegurado  por um jogo de forças ou de virtudes opostas e complementares, traduzindo-se o seu crescimento e declínio pela sucessão das estações. Compreendem-se assim as dificuldades de diálogo surgidas logo que as civilizações chinesa e européia entraram em contato no século XVII: de acordo com as suas tendências, os missionários cristãos verão na noção de tian (Céu, ordem natural) um simples conceito mecanicista ou o vestígio de um culto monoteísta.

Sofistas e especialistas dos “Cinco Elementos”
A retórica que foi uma das originalidades da escola de Mozi, baseava-se em analogias, em comparações largamente desenvolvidas, em repetições. Pesadona e emaranhada, não se adequava de modo algum aos debates nas cortes principescas e às   negociações diplomáticas, casos em que o objetivo não era pregar mas sim conseguir uma adesão com poucas palavras. Então o discurso é vivo, alusivo, violento ou irônico. Os interlocutores servem-se de todos os meios  –  regras morais e rituais, anedotas, apólogos, precedentes históricos, paradoxos e raciocínios com conclusões absurdas. Para embaraçar e surpreender o adversário não se receia o recurso a argumentos falaciosos. As condições políticas da época dos Reinos Guerreiros favoreceram o desenvolvimento de uma sofistica de caraterísticas originais e que se distingue da do mundo grego (ligada aos debates judiciais e políticos) pelo seu objetivo essencialmente pragmático. A duração de cada discurso era medida. Embaraçados por uma língua que não permitia distinguir a unidade da pluralidade, o abstrato do concreto, os sofistas chineses (bianzhe) também nunca puderam levar muito longe uma análise da linguagem nem construir uma lógica do discurso. Hui Shi (aproximadamente 380-300 a.C.) e o seu sucessor mais conhecido, Gongsun Long (aproximadamente 320-250) são os únicos de que subsistiram alguns fragmentos e inclusivamente o próprio nome. Deve-se-lhes uma série de paradoxos ligados à análise das idéias de grandeza, de tempo, de espaço, de movimento, de unidade e de multiplicidade, que tiveram algum êxito na sua época mas que representam um esforço de reflexão sobre noções abstratas que não viria a ser continuado.

Não seria com efeito por este caminho que se iria desenvolver a lógica chinesa, mas sim por aquele que havia sido inaugurado pelos especialistas da adivinhação, iniciadores das matemáticas no mundo chinês. O manejo dos números e as combinações de sinais capazes de traduzir valores concretos de espaço- tempo, iriam servir de fundamento às teorias filosóficas e às ciências. Menos irracional que muitas outras, esta maneira de apreender o mundo iria demonstrar o seu valor heurístico em muitos domínios ao longo da história (química, magnetismo, medicina, etc.). É precisamente na época dos Reinos Guerreiros que parecem ter sido sistematizadas as teorias classificatórias, herdadas dos círculos de adivinhos, que põem em correlação e reagrupam em conjuntos espaço- temporais as virtudes fundamentais, simultaneamente opostas e complementares (yin e yang, forças masculina e feminina, e os Cinco Elementos). Tanto quanto a sucessão, o crescimento e o declínio destas virtudes permitem interpretar quer a ordem natural quer a história. Explicam também o nascimento, apogeu e declínio dos poderes políticos. Estas teorias que respondem às necessidades de uma época de perturbações sociais e políticas, mas que terão um enorme sucesso durante os impérios dos Qin e dos Han, parecem ter sido particularmente cultivadas na “academia” de Jixia, em Linzi (atual Yidu, no Shandong), capital de Qi, onde se reuniam os representantes de diversas escolas. A tradição atribui a um tal Zou Yan (aproximadamente 305-240) o mérito de ter sistematizado estas concepções cosmológicas.